As dramaturgias do Caminho do Mar...
Footfalls ou por onde caminha o Mar?
Por Cristiane Santos
“Dance, dance, senão estamos perdidos... "
“ Trata-se da vida e, portanto, de encontrar uma linguagem para a vida; e, como sempre, trata-se do que ainda não é arte, mas talvez possa se tornar arte “
(Pina Bausch 1940-2009).
“As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto”.
(Ítalo Calvino 1923-1985).
Metodologias de criação
Falar sobre metodologia de criação é sempre um desafio, principalmente quando se trata de uma obra ainda recém-nascida, mas neste caminho do mar nada foi fácil e sempre fui surpreendida pelo seu percurso e no final deste, caminho, falar sobre este acontecimento cênico e afetivo que me moveu e consequentemente moveu a organização desta dramaturgia, ou melhor, das dramaturgias do caminho do mar é uma forma de deixar um vestígio-memória daquilo que foi vivido durante estes oito meses.
A proposição Footfalls ou por onde caminha o Mar? veio de um desejo pessoal em aprofundar a pesquisa artística da Cia. As Marias* que começou com o projeto Dançando com a Cidade, contemplado pelo prêmio VAI/SBC-2010. Dançando com a Cidade tinha como mote de pesquisa e criação as memórias e afetos da cidade de SBC, tendo resultado em cinco estudos coreográficos: “O Caminho do Mar... encontro das Flores", "Poemaflor", "Esperas", “An.dor" e "Footfalls ou por onde caminham os pés?” e no espetáculo de dança contemporânea “An.dor”, do qual assino a direção cênica.
“Footfalls ou por onde caminha o Mar?” é um desdobramento desta pesquisa artística, revisitando e olhando novamente para esta metáfora/Caminho do Mar, deste lugares de passagens, dos deslocamentos, daquilo que fez mover as multidões de gentes.
Refazendo as perguntas com o desejo de revelar aquilo que ficou guardado de Dançando com a Cidade e abrindo espaço para novas e antigas questões:
Como é a cidade que habita você? Quais histórias habitam você e a cidade? O Mar percorrer você?
Perguntas que permearam este projeto como uma prece sempre atenta ao aportar em cada uma das cidades pesquisada: Santos, Cubatão, SBC, Paranapiacaba/Santo André e Ipiranga/São Paulo, cidades do caminho do Mar.
“A dança deve ter outra razão além de simples técnica e perícia. A técnica é importante, mas é só um fundamento. Certas coisas se podem dizer com palavras, e outras, com movimentos. Há instantes, porém, em que perdemos totalmente a fala, em que ficamos totalmente pasmos e perplexos, sem saber para onde ir. É aí que tem início a dança, e por razões inteiramente outras, não por razões de vaidade. Não para mostrar que os dançarinos são capazes de algo de que um espectador não é. Há de se encontrar uma linguagem com palavras, com imagens, movimentos, estados de ânimo que faça pressentir algo que está sempre presente”.
Pina Bausch (27/07/1940-30/06/2009)
“Eu estou interessada no teatro que existe no momento em que você diz: “espera um minuto isso não é teatro, isso é ópera”, ou “isso não é teatro, é dança”, ou “isso não é teatro, é música”, e quando [...] Eu sempre tenho a impressão de que na fronteira onde duas disciplinas se encontram tem uma área em ebulição que é muito viva. Quer dizer, o que é maravilhoso no teatro é que ele pode ser tantas coisas, pode ter tantos tipos diferentes de relação com o público. Então, eu acho que é sempre importante em cada projeto, trabalhar com alguém de outra disciplina, ou trabalhar com um assunto que é interdisciplinar.”.
Anne Bogard (25/09/1951)
A partir dos imaginários, memórias de habitantes, afetos e fatos históricos das cidades que compuseram esta pesquisa, o desafio de “Footfalls ou por onde caminha o mar?” seria e é o de pensar a composição cênica em artes integradas: a dança, o teatro, a intervenção urbana, as artes visuais, a fotografia e o documentário, e do encontro destas linguagens nasceria esta trama dramatúrgica do Work in progress Cinco ou seis passos para o Mar, porém a dramaturgia de uma obra é um processo constante de investigação, ela requer pensar e organizar procedimentos de criação e referenciais teóricos para o seu desenvolvimento.
Perguntar-se como transformar ideias em pensamento/corpo/forma poética, exigiu a elaboração de procedimentos de investigação que dessem conta também da brevidade de nossa passagem por cada cidade do caminho do Mar. A oficina História de Nós foi desenvolvida para ser um espaço de pesquisa e criação de modo a potencializar as interlinguagens que compõem o projeto, sendo um laboratório de pesquisa estética movente e adaptável às realidades das cidades e pessoas que compõem o caminho do mar, desdobrando-se em intervenções cênicas.
As intervenções assumiram uma multiplicidade de estéticas, tendo algumas a participação de integrantes da oficina e artistas-criadores do projeto, caso de Paquetá/Santos, outras foram composições com a participação exclusiva dos integrantes da oficina, caso do Coletivo 302 em Cubatão, que foi uma ação muito importante do ponto de vista da composição cênica, pois foi possível, estando neste encontro com outros corpos ser um agente provocador na criação a partir das metáforas do caminho do mar, observar como perguntas/metáforas do nosso processo vem a ser respondida sob outra perspectiva, desdobrando-se em reencontrar novamente a imagem da Miss, agora não era a Miss Santos, mas a Rainha das Serras. Outras composições foram criadas para serem experimentadas na cidade, “Ação nº 04 - Procura-se” em SBC, “Ação nº 05 - De onde se vê! Experimento poético Sherazade e o Mar” em Paranapiacaba/Santo André e “Ação nº06 - Lágrimas no Caminho” no bairro do Ipiranga em São Paulo.
Mergulhar na singularidade de cada Cidade, observando aquilo que se REPETIA e aquilo que na REPETIÇÃO se torna uma DIFERENÇA, foram chaves essenciais de investigação poética para a composição cênica do Work in progress do projeto.
Esses conceitos REPETIÇÃO/DIFERENÇA vem de estudos acerca das obras da artista de dança Pina Bausch**. Essa artista tem como uma de suas estratégias coreográficas em composições o uso da REPETIÇÃO, essa repetição diz respeito a uma mesma partitura coreográfica que vai se repetindo até o esgotamento do bailarina(o), gerando uma transformação naquilo que se avistou em um primeiro momento, podendo acontecer também quando um mesmo objeto cênico e/ou partitura de cena é realizada novamente pelo mesmo e /ou outro bailarina(o), colocada em jogo em outro fragmento de cena, criando outros sentidos para composição, ampliando o espaço para uma multiplicidade de leituras.
Neste velejar de oito meses foram se repetindo a cada cidade em que se aportava, questões ligadas ao impacto da construção da Via Anchieta e o avanço do progresso paulista, as forças da Natureza que a todo o momento se impõem ao ideário de cidade, as lutas por moradia oriundos dos fluxos de trabalho do Planalto ao Litoral, o declínio de bairros antes prósperos e agora deixados à deriva, migrantes e imigrantes que vieram trazidos pelo mar e suas promessas de uma nova vida, essas repetições, foram dando forma e afirmando imagens/alegorias que surgiram intuitivamente na primeira cidade pesquisada, Miss Santos, que se desdobrou na Rainha das Serras, na Miss Progresso, na Miss Soterrada, a cidade, este Ente, a Cidade!
Procedimentos de Criação – Travessias
As Travessias foram experienciadas em 2011, durante o processo de Dançando com a Cidade, este procedimento cênico foi compartilhado com a Cia. As Marias, durante orientação dramatúrgica pela artista de dança Valquiria Vieira***, a partir deste procedimento cênico, é possível levantar os materiais que são mais potentes e presentes durante todo o processo de pesquisa. As Travessias, recortam, propõem no tempo do acontecimento cênico recortes dramatúrgicos, pois o artista-criador se vê obrigado a jogar com um ambiente, permeado pelas metáforas e pesquisa de movimento, objetos, texturas, fotos, textos, músicas, figurinos, que é organizado por ele e pelos artistas que contribuem com suas provocações poéticas, é um dispositivo que instaura este ambiente de criação a partir de regras estabelecidas e pensando a composição da cena de modo não hierárquico, todos os textos da cena estão em diálogo.
O entendimento de composição cênica deste processo de criação tem por referência de estudo os processos de composição coreográfica de Pina Bausch, que possuem um modo de organização muito particular da artista que parece se inspirar numa estética de filme: usando da fragmentação do gesto, repetição de sequências, efeitos de close e de focalização, câmera lenta, olhares para a câmara, narrativa, montagem em câmara rápida. Como se a maneira de coreografar passasse por um olhar mediado pela câmara ou mesa de montagem do cinema ou vídeo. Para alguns Pina é chamada de um Godard antes do Godard, Pina é cinemática.
Segundo Maguy Marin, bailarina e coreografa francesa, pertencente à geração da chamada nouvelle danse francesa “... a Pina é como uma magnífica montadora de cinema que faz teatro. Ela embaralha o plano e depois administra os seus planos, cria cruzamentos, corta-os. O seu trabalho de montagem é fantástico…”.
Novamente este procedimento, as travessias, foi retomado para dar conta de recortar, aprofundar e organizar os materiais dramatúrgicos do que viria a ser o Work in progress.
Realizamos as travessias individuais com duração de 60mn cada e a partir desta experiência selecionamos os materiais cênicos individuais, recortando/fazendo escolhas e novamente nos colocamos em jogo para a realização da Travessia Cruzada, também com duração de 60mn. Realizada essa etapa, agora vamos a fase de elaboração e organização da composição cênica, a dramaturgia do Work in progress.
A Composição Cênica do Work in Progress Cinco ou seis passos para o Mar
Dramaturgias do Caminho do Mar.
O Work in progress, Cinco ou seis passos para o Mar é composto pelo que chamo de dramaturgias do caminho mar, essas dramaturgias compõem as singularidades e metáforas que formam esta teia, de deságue e escoadouro, do trabalho e ideário de progresso, de mercadorias e gentes, estas multidões de afetos ligando cinco cidades e os seus deslocamentos, as Misses, alegorias da Cidade e seus declínios, entre aquilo que está sempre a se REPETIR, entre aquilo que é uma DIFERENÇA na REPETIÇÃO, e o que gera TRANSFORMAÇÃO, pois para compor a cena, de modo a estar em diálogo com suas dramaturgias (movimento, palavra, imagem, indumentária, instalação plástica, vídeo, memórias e afetos), se fez necessário um plano de composição, o plano da invenção.
Plano de composição para as dramaturgias do mar... para aquilo que escapa ao linear e o oficial...
em estado de jogo, o maravilhamento - Notas do caderno de processo de Cristiane Santos
Após a Travessia Cruzada, trago nesta última etapa do processo de criação, outro procedimento cênico ligado a modos de organização dramatúrgica, o foco agora era a composição cênica, a partir do conceito e metáforas estabelecidos em um mapa para composição propus três grandes temas que permeiam estas dramaturgias do caminho do Mar: o Lírico e a Memória - O que se evoca, Os Trabalhos e o Progresso- Repetições e Esgotamento e Vestígios Afetivos - Repetição e Transformação e as estratégias de composição, ligadas a ESPAÇO X TEMPO.
Estabelecidas às regras e imbuídas de materiais já recortados durante as travessias individuais e cruzadas, exponho o jogo ao grupo de artistas criadores, um primeiro roteiro é esboçado junto a seleção de registro audiovisuais, e no decorrer dos ensaios, e na falta também, pois o cronograma vai ficando reduzido, ele vai se alterando e vou criando novas regras para cada procedimento, ou seja, a regra do jogo como uma aliada para o acontecimento cênico, parafraseando o artista Enrique Pardo, “em uma criação temos que ter consciência de estar no jogo atuando com 100% de liberdade em relação a 100% de regras”, afunilando o recorte para chegar a uma síntese, uma invenção das cidades que encontramos.
“Encontramos cidades que desejam não serem esquecidas e são contadas com saudade por seus moradores. Cidades soterradas, construídas e reconstruídas incessantemente sabe-se lá que projeto seguem. Há cidades que se renovam no abraço de uma nova geração que descobre outras potências para habitá-las. Fomos encontrados ou encontramos sonhos, fantasmagorias e fabulações que atravessam os tempos, as pessoas, seus afetos e o ente que nomeamos “Cidade”?”
Os procedimentos de criação experienciados neste processo foram essenciais para o aprofundamento das metáforas que foram permeando o projeto e para a organização de uma dramaturgia em artes integradas, muitas cenas surgiram das investigações do corpo das artistas criadoras em relação aos objetos e figurinos; corpo em relação às texturas e materialidades da natureza; as fotografias antigas, ou seja, a plasticidade que envolve este trabalho é dramaturgia.
Apresentamos o trabalho em processo “Cinco ou seis passos para o Mar”, nas cidades de Santos, SBC e Cubatão em dois formatos: Intervenções para as ruas e avenidas principais e o Work in Progress em três espaços e horários distintos: praça principal, galpão e obra em construção, temos novamente o ESPAÇO como regra fundamental para a composição cênica no final deste processo, pois este work in progress somente se completaria dramaturgicamente no encontro com o público e já neste encontro público e obra, esta já se reconfigura por novos sentidos.
As intervenções formaram uma composição de solos, duos e trios e trouxeram elementos da dramaturgia do Work in progress, porém com outra organização espacial, pois as mesmas aconteceram em deslocamento pelas avenidas principais das cidades.
As dramaturgias do Caminho do Mar são sobreposições narradas de forma não linear, o que nos moveu foi à possibilidade de reinventar as cinco cidades construídas nesse percurso da terra ao mar, buscando deslocar o olhar dos passantes para um acontecimento poético, rompendo por um instante o fluxo cotidiano dos espaços públicos e das histórias oficiais. “Cinco ou seis passos para o Mar”, é a afirmação, manifesto poético composto de memórias e invenções daquilo que entendemos Cidade, do que move os afectos, daquilo que podemos sonhar e nos reconhecer no Outro.
“. . . um dia em uma de suas aulas o Junior nos disse a seguinte frase: "...quando dançar seja inesquecível para o outro...", esta era a instrução dançar ao ponto de ser inesquecível para o outro... ser inesquecível para si.” - Caderno de processo de Dançando com a Cidade- Cristiane Santos.
A primavera vem chegando e nossas aparições, quem sabe, ficarão guardadas naquele instante fotográfico, qual um álbum de recordações. Modificamos a paisagem e fomos por ela modificados. Encontramos tantas gentes e fui por elas encontrada.
“Só os vestígios nos fazem sonhar” - Nota do caderno de processo Cristiane Santos
René Char
Bibliografia:
Pina Bausch e o Wuppertal Dança-Teatro: Repetição e Transformação
Autora: Ciane Fernandes
Editora Hucitec
Pina Bausch - Ensaio Biográfico
Autora: Claudia Galhós
Editora D. Quixote
Dance, senão estamos perdidos! Discurso proferido por Pina Bausch na ocasião do recebimento do título de doutora "honoris causa" da Universidade de Bolonha (Itália).
Tradução de José Marcos Macedo.
Dançar Afetos com a Cidade: Pina Bausch, Tanztheater Wuppertal e Istambul.
Autora: Bianca Scliar Mancini.
Site: http://idanca.net/dancar-afetos-com-a-cidade-pina-bausch-tanztheater-wuppertal-e-istambul/
Artigo O Lamento da Imperatriz: Um filme de Pina Bausch
Autora: Solange Pimentel Caldeira
Fênix - Revista de História e Estudos Culturais Vol. 4, ano IV, nº 3.
Videografia
O Lamento da Imperatriz
Roteiro e Direção: Pina Bausch
Lançamento 1990
* Cia As Marias, núcleo cênico criado em 2005, pelas artistas Cristiane Santos, Cibele Mateus e Patrícia Santos, com interesse em criações poéticas para ruas e espaços abertos em artes integradas;
** Pina Bausch – (Bailarina e Coreografa alemã. Foi diretora do Tanztheater Wuppertal e suas criações em dança-teatro até hoje tem exercido grande influência na dança contemporânea alemã e internacional);
*** Valquiria Vieira (Artista de dança e teatro, fundadora da Cia. Corpocena. Mestranda em Artes da Cena pela Unicamp e analista sênior do Programa de Qualificação em Artes da Secretaria de Estado da Cultura em São Paulo. Especialista em Técnica Klauss Vianna pela PUC-SP. Graduada em Comunicação das Artes do Corpo pela PUC-SP);
Fotos: Patrícia Santos
Fotos: Patrícia Santos
Fotos: Cristiane Santos
Reflexões sobre o processo de criação audiovisual no projeto “Footfalls ou por onde caminha o mar?”.
Barbara Morais e Marcelo Eme
1. Work in Progress e as experiências com o “Efeito Kulechov”.
O work in progress “Cinco ou seis passos para o mar” contou com um conjunto de imagens que foram projetadas simultaneamente com a apresentação cênica das três artistas da Cia as Marias durante as apresentações realizadas nas cidades de Santos, São Bernardo do Campo e Cubatão.
Esse vídeo possui 00:40:53 de duração e está dividido em 07 cenas que procuram estabelecer um diálogo entre os fatos históricos e o imaginário do Caminho do Mar, nos valemos de imagens de arquivo, imagens captadas durante nosso processo de pesquisa e também de imagens produzidas especificamente para o work in progress.
Para a concepção de montagem desse material partimos da premissa de Kulechov * que diz “O plano cinematográfico não é uma fotografia (estática). O plano cinematográfico é um signo, uma letra para a montagem”. Com isso, cada plano escolhido na montagem carrega em si um signo de referência da pesquisa, trata-se de uma imagem metafórica carregada de sentido, por vezes, alegórico do imaginário dos habitantes das cinco cidades que compõem esse Caminho do Mar.
Vale salientar que o “efeito Kulechov” aqui foi experimentado fora dos limites do cinema ficcional, pois dentro da proposta cênica do work in progress esse conjunto de imagens estava em consonância direta com as definições do cinema experimental (ausência de narrativa, subversão de enquadramentos fotográficos, justaposição de imagens, etc), esse fato, inexoravelmente, coloca a teoria de Kulechov como uma fonte de inspiração ressignificada em nosso trabalho. A experiência de deslocamento do conceito da “imagem-signo” para o campo da experimentação alegórica se mostrou eficiente para uma espécie de compreensão semântica do conteúdo projeto nas apresentações.
1.2 Exemplificações imagéticas sobre o conceito de “geografia criativa” **
O “roteiro” que o conjunto das imagens da projeção respeitou foi ancorado dialogicamente ao percurso que a equipe do projeto percorreu durante o processo de pesquisa. Evidentemente empregamos o termo “roteiro” desassociado de sua assepsia original, procuramos ilustrar ao leitor que o conjunto de imagens que deram origem ao vídeo da projeção do work in progress não extrapolam os limites colocados pela própria pesquisa em cada uma das cinco localidades (Santos, Cubatão, Paranapiacaba, São Bernardo do Campo e Ipiranga) que compõem o Caminho do Mar.
Abaixo alguns exemplos da conjugação entre os conceitos do “efeito Kulechov e da “geografia criativa”. Para isso recorremos à alguns frames do vídeo da projeção:
Frame da cena #06 (vídeo de projeção) do work in progress.
Nessa imagem vemos um aquário posicionado na areia da praia e no segundo plano o mar em desfoque, A cena começa com o barco de papel no fundo do aquário, segundo depois a água invade o espaço vazio do aquário até que aconteça o transbordamento. Ao mesmo tempo em que essa ação se desenvolve na cena, ouvimos uma justaposição de vozes extraídas dos depoimentos gravados durante a pesquisa que tratavam de enchentes que correram pelo Caminho do Mar.
Frame da cena #05 (vídeo de projeção) do work in progress.
Em primeiro plano vemos os galhos da rizophora *** e no segundo plano, pedaços de tecido vermelho fixados intencionalmente na vegetação. Aqui trabalhos o signo do processo de despoluição da cidade de Cubatão. Durante o processo de pesquisa tomamos conhecimento sobre a ausência dos guarás-vermelhos, ave típica em regiões de mangue. Depois que Cubatão passou pelo processo de despoluição com a implementação de filtros anti-poluentes no pólo industrial, algum tempo depois disso foi notado o retorno dos guarás para os mangues de Cubatão. Nessa cena os tecidos vermelhos foram fixados numa vegetação original de mangue para reforçar esse signo.
Frames da cena #04 (vídeo de projeção) do work in progress.
Nessa sequencia de três imagens percebemos um plano geral do alto do mirante de Paranapiacaba, onde é possível notar a descida da Serra do Mar, logo a câmera se movimenta verticalmente e o que temos é a presença do céu em um tom de azul e por fim, depois de outro movimento de câmera, uma ave de rapina é acompanhada pela imagem durante o vôo. A concentração dessas imagens gravadas em plano sequência dialoga com metaforicamente com o projeto desenvolvimentista que desembocou na construção da Via Anchieta e com ela todas as consequências negativas oriundas desse processo.
2. O registro audiovisual e suas múltiplas formas de aproveitamento.
Desde a concepção do projeto houve uma unanimidade entre a equipe, registraríamos todos os passos desse projeto em vídeo e fotografias. Evidentemente sempre existe uma diferença entre o que imaginamos previamente e o que a realidade do trabalho de campo apresenta, essa constatação se reforça quando o trabalho de pós produção se debruça sobre horas e mais horas de material bruto****, buscando extrair dele produtos audiovisuais autônomos e pertencentes a estéticas distintas dentro da linguagem audiovisual. Existe um postulado na atividade cinematográfica que diz: o momento crucial da prática cinematográfica acontece na montagem do material. Voltaremos a esse tema mais adiante.
Entendemos como prudente apontar como se deu a esquemática de catalogação e compartilhamento do material em vídeo desse projeto. O primeiro estágio do material captado foi entendido como “acervo da pesquisa”, pois nele qualquer pessoa que se interesse em pesquisar o Caminho do Mar, teria acesso ao material em estado bruto1 para uma análise livre das induções que a edição desse material poderia provocar. Para isso o material bruto está disponibilizado na plataforma de distribuição de vídeos YouTube através do canal do projeto. O segundo estágio do material foi compreendido como produtos audiovisuais editados e consequentemente montados de modo compartilhar a experiência do processo da construção visual do ponto de vista da pós-produção sobre o material bruto. Esses produtos do segundo estágio, além de estarem também disponibilizados no canal do projeto na plataforma YouTube, também estão disponíveis no website do projeto, bem como na rede social Facebook.
2.1 Um acervo que é tributário ao cinema documentário.
A equipe desse projeto contava com a vivência de parte de seus integrantes na prática do cinema documentário e como não poderia deixar de ser, essa será uma marca presente na quase totalidade das imagens que constituem o acervo do projeto “Footfalls ou por onde caminha o mar?”. As escolhas técnicas e estéticas próprias do documentário variaram de acordo com a situação que a pesquisa encontrava no campo, esse era o fator determinante que orientava a gravação. Um registro de pesquisa em vídeo não é um documentário, por mais que a equipe empregue um conjunto de técnicas próprias do documentário na captação das imagens, isso não garante que o resultado seja um filme de documentário. Um projeto de documentário inicia-se muito antes da câmera ligada, pressupõe um projeto de direção, uma estrutura de abordagem para cada ator social já previamente identificado, um projeto de fotografia com locações já estabelecidas, etc. Mas esse não era um projeto de documentário, mas sim um projeto de artes integradas, onde o vídeo era somente um de seus componentes.
O ambiente da pesquisa numa equipe de diferentes orientações artísticas cria uma atmosfera de múltiplos significados e desejos que precisam ser conjugados pela câmera numa perspectiva de aproveitamento futuro do material. Quando se estabeleceu o objetivo da realização de cinco documentários de curta duração, sendo um para cada localidade que compõem esse Caminho do Mar, o maior desafio seria partir do material registrado na pesquisa e no processo de montagem estabelecer a narrativa desses documentários, isso porque o processo de direção foi substituído pelo processo de pesquisa e isso por si já indicava que esses cinco vídeos seriam frutos da montagem. Através de uma análise dos cinco documentários o consulente poderá estabelecer de uma forma direta esse processo quando acessar o material bruto da pesquisa.
2.2 Escolhas estéticas para o registro audiovisual da pesquisa.
Os registros audiovisuais tiveram características distintas para cada evento do projeto ao logo dos meses.
As “derivas” pelas cidades e as “entrevistas” com os moradores dessas localidades propiciou que fosse evocado o conceito de “câmera personagem”, próprio da escola francesa de documentário conhecida como cinéma vérité, aonde a câmera conduz a audiência para dentro do momento da pesquisa; e o documentário estilo ensaio caracterizado por pessoas falando para um ouvinte oculto no quadro.
“Oficinas” e “intervenções” tiveram tratamentos distintos, sendo que a primeira se caracterizou pela cobertura linear dos acontecimentos e a segunda baseada no conceito da auto-mise-en-scène da câmera que sem combinações prévias, lança-se ao encontro dos acontecimentos da intenvenção.
* Lev Vladimirovitch Kulechov (1899-1970) cineasta russo, teórico e fundador da escola de cinema de Moscou.
** Ismail Xavier (2005, pg 47) explica o conceito de Lev Kulechov da seguinte forma: A noção de “geografia criativa” corresponde justamente ao processo pelo qual a montagem confere um efeito de contiguidade espacial a imagens obtidas em espaços completamente distantes e dá aparência de realidade a um todo irreal. No cinema, é permitida
*** a construção de um todo (ou corpo) através da combinação de partes na realidade pertencentes a totalidades distintas [...].
****Entende-se aqui como material bruto os arquivos digitais na extensão AVCHD organizados cronologicamente em software de edição, sempre separados pela totalidade dos acontecimentos do trabalho de pesquisa, oficinas e intervenções. Identificados com encartelamento simples e legendados nas plataformas de hospedagem de vídeos na internet.
Referências Bibliográficas
MOURA, Edgar. Câmera na Mão, Som Direto e Informação.
Rio de Janeiro:
FUNARTE, 1985
XAVIER, Ismail. O Discurso Cinematográfico: a opacidade e a transparência.
São Paulo:
Paz e Terra, 2005.
GONÇALVES, Marco Antonio. O Real Imaginário: etnografia, cinema e surrealismo em Jean Rouch.
Rio de Janeiro:
Topbooks, 2008