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Paranapiacaba, a quarta cidade do projeto.

Por Patrícia Santos

Paranapiacaba, a cidade misteriosa de nosso caminho. A priori tínhamos a arquitetura das casas, o trem, o relógio da vila, o festival de inverno como imaginário inicial mas qual era o caminho do mar ali? Como o mar percorreu e ainda percorre a vila, as pessoas, seus modos?

Paranapiacaba – De onde se avista o mar! do tupi através da junção de paranã (mar), epîak (ver) e aba (lugar).

 

A Estrada de ferro, ânsia de escoar com agilidade a produção de café do interior paulista ao porto em Santos rumo ao velho continente, ânsia de trazer ao país todo um processo industrial que por lá já esta a todo vapor, teve como um dos maiores acionistas e idealizadores o lendário Barão de Mauá que em 1859, chamou o engenheiro ferroviário britânico James Brunlees, que veio ao Brasil e deu viabilidade ao projeto mas cuja execução foi de responsabilidade de outro engenheiro inglês, Daniel Makinson Fox. Enfrentar os desníveis da Serra do Mar foi um grande desafio à engenharia inglesa.

 

A Estrada de Ferro Santos-Jundiaí, o grande empreendimento dos ingleses, a São Paulo Railway Company construiu no Alto da Serra do Mar a vila ferroviária de Paranapiacaba, onde as relações de trabalho eram completamente diferentes do que era comum no Brasil da época, tudo sendo organizado num regime fortemente hierárquico, construindo a primeira cidade-empresa onde a arquitetura e o projeto urbanistico da vila distinguem socialmente seus habitantes e permite o controle social por meio do sistema panóptico existente em sua organização: a residência do engenheiro-chefe, denominada de “Castelinho”, construída no alto de uma colina, com vista privilegiada pra toda a vila ferroviária, permitia assim que ele pudesse fiscalizar todo o trafego de trens na subida e descida da Serra do mar, o pátio de manobras, as oficinas e a circulação de seus subordinados na vila. Tudo era visto e supervisionado dentro dos rígidos padrões ingleses, inclusive até 1946 só era permitido morar na vila quem trabalhasse na estrada de ferro.

 

Com a saída dos ingleses em 1946, resultou na estatização da ferrovia que passa a ser controlada pela Rede Ferroviária Federal S/A que substitui o sistema de trem funicular pelo sistema de Tração Cremalheira-Aderência. Em 1998, é decretada a extinção da Rede Ferroviária e do transporte de passageiros até Santos. Em 2001, Paranapiacaba deixa de ser estação Terminal do Trem metropolitano. Em 2002 a Vila é adquirida pela Prefeitura de Santo André tornando parte da cidade.

Com todas essas informações históricas fomos ao ENCONTRO da Cidade, a quarta cidade no projeto, e com vontade de OUVIR Paranapiacaba a partir de seus moradores e poder investigar nossas perguntas-guias: Como o mar percorreu e percorre a vila, as pessoas, seus modos de existência? Como é a cidade que você habita? Quais histórias habitam você e a cidade?

 

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Pesquisa de Campo:

 

Como se aproximar de Paranapiacaba sem cair no olhar e uso do turista de fim-de-semana? Como se aproximar das pessoas sem ser o turista ou o pesquisador histórico da vila?

Decidimos fugir desses lugares comuns da cidade, decidimos conhece-la indo às segundas-feiras do mês de junho e encontramos uma Paranapiacaba toda fechada, casas e portas trancadas, uma cidade silenciosa e parecendo abandonada de gente, exceto alguns trabalhadores da MRS que faziam a manutenção dos trilhos incessantemente. Não conseguimos avistar o mar do mirante no Morro pois ele estava sem escada, algo irônico para a cidade que é nomeado como “lugar de onde se avista o mar. Logo também sentimos uma presença silenciosa e imponente na cidade, a NEBLINA chegando por entre a serra.

 

Andamos pela cidade vindo da chamada “parte baixa” (Vila Martin Smith e Vila Velha) e indo em direção a “parte alta”(o Morro), observando seu patrimônio arquitetônico, o famoso relógio parado no tempo, o Castelinho, o locobreque, o mercado municipal, algumas casas bem a mercê do tempo, outras fechados para restauro, tentamos contato com alguns passantes mas poucos diálogos. Na Biblioteca fomos recebidos pela bibliotecária que nos apresentou um material bem interessante sobre as lendas que habitam a cidade como a famosa lenda do Véu da Noiva (veja aqui: http://www2.santoandre.sp.gov.br/index.php/historia/lendas-e-historias/o-veu-da-noiva )

 

Nosso contato na cidade era a funcionária Tatiana Machado, funcionária da Subprefeitura, que nos recebeu e nos informou sobre algumas particularidades de Paranapiacaba, como o fato de segunda-feira e terça-feira ser o sábado e domingo deles por isso não acharmos muitas pessoas na rua e que devido o clima ser muito úmido as pessoas manterem as casas fechadas, hábitos serranos, como fomos aprendendo. Falamos sobre nossa necessidade de encontrar pessoas antigas da Vila que nos pudessem contar sobre o trabalho na ferrovia, Tatiana nos indicou vários nomes e nos apresentou o historiador Eduardo Pin que nos trouxe sua pesquisa sobre o patrimônio humano de Paranapiacaba, que veio de encontro com o nosso desejo de escutar as pessoas, perceber quais são os afetos que elas construíram com a Vila.

Em sua entrevista e pesquisa Eduardo Pin, nos trouxe a questão da “cidadania ferroviária” que foi construída com o sistema de trabalho implantado pelos ingleses e como o clima da Serra moldou e molda até hoje os hábitos e costumes locais, como a dificuldade de secar a roupa e a pinga de Cambuci pra combater o frio úmido.

 

“(...) Trabalhar na Companhia era sempre o elemento identitário mais forte. Tamanha “cidadania ferroviária” consolidou-se também pelos aspectos distintivos desse operário assalariado, com remuneração periódica, benefícios trabalhistas extensivos à família, além do emprego que, por si só, era signo de qualificação e, portanto, de notoriedade. O orgulho de pertencer à ferrovia como coisa mais organizada e organizadora da existência dava ao ferroviário ares de grandeza, no sentido mesmo de diferenciação dos demais trabalhadores brasileiros. Gente de ferro, forte e orgulhosa da sua categoria, sua função de transportar, participar do “progresso”.

 

Ser da “Estrada”, trabalhar na “Inglesa” – como era chamada a São Paulo Railway – e, mesmo depois, trabalhar na “Rede” permanecia como identidade repleta de glória. Fazer parte da “família ferroviária” nobilitava o trabalhador e envernizava as feições operárias da classe, chegando mesmo a torná-las obscuras, secundárias. Na Vila, essa “nobre distinção” revelava, por um lado, uma adesão alienada à monárquica hierarquia britânica, assim como camuflava o sofrimento do trabalho, as adversidades climáticas da região, o relativo isolamento da Vila, e a dura realidade de se viver no mesmo local em que se trabalhava, dentro de um complexo ferroviário barulhento, fumegante, fuliginoso, controlado por rigorosa vigilância, a funcionar todos os dias da semana, com a vida regulada pelo ciclópico relógio da estação, em estafantes doze horas de jornada.”

As condições naturais, o clima, também moldariam decisivamente hábitos e costumes em Paranapiacaba. A umidade constante ensina que as casas devem permanecer fechadas. (Eduardo Pin. In Patrimônio Humano)

Os relatos dessas pessoas nos trouxeram muito elementos para vermos uma Paranapiacaba que vive dentro delas e que deseja não ser esquecida, dessas histórias surgiram muitas imagens pra a criação do Work in progress como a dificuldade de secar roupas devido a umidade, a história da noiva abandonada, os bilhetes deixados por Dona Cida, esposa de Sr. Diniz, na porta avisando que ia embora pois não aguentava as dificuldades de viver na cidade. Histórias que eles contam e recontam ora com nostalgia, saudade de um tempo de prosperidade e cuidado com a cidade ora como critica da atual situação de abandono pela qual passa a cidade, histórias que precisam ser contadas e recontadas pois para essas pessoas o impacto do fim da Rede Ferroviária trouxe o fim da “cidadania ferroviária” e a necessidade de reinventar-se com outros moradores que foram chegando, como nos coloca Eduardo Pin:

 

“Inicialmente, a compra da Vila pela Prefeitura de Santo André gerou certa desconfiança e alguma resistência na comunidade remanescente. Era do senso comum que Paranapiacaba fosse da ferrovia, como território isolado, autônomo – de gestão e costumes próprios – , não pertenceria a qualquer outra cidadania, nem municipalidade. No entanto, os processos históricos que condicionaram as transformações da Vila deram origem a uma comunidade mais diversa, menos coesa, que, em sua maior parte, não mora em Paranapiacaba por trabalhar na ferrovia.” (Eduardo Pin. In Patrimônio Humano)

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Conhecemos essas personas da cidade que nos revelaram aspectos preciosos de seu habitar Paranapiacaba, mas ainda assim a comunicação com outros habitantes continuava difícil, pois como nos foi revelado muitos trabalham e estudam em Ribeirão Pires, Rio Grande da Serra ou Santo André sendo difícil encontra-las na semana e no fim-de-semana trabalham no atendimento aos turistas. Percebemos que o ritmo da cidade precisou se moldar dentro do olhar e busca turística para que a própria cidade continue a existir economicamente.

 

Um dos procedimentos para contatar mais pessoas da cidade e conseguir trazer mais olhares sobre a Vila surgiu na participação no grupo do facebook “Amigos de Paranapiacaba”, onde encontramos muitas histórias, fotos, vídeos de moradores da cidade. A plataforma virtual se apresentou como uma Praça de Encontro virtual dos habitantes. Não só as postagens traziam histórias intensas com a cidade mas os comentários eram recheados de uma riqueza de sentimentos e surpresas sobre moradores e seus cotidianos, coisas simples mais intensamente afetivas como o Bolo de Dona Nênê, um encontro no Lira Serrano, alguma foto do grupo escolar, a saudade do sereno nos cabelos ao atravessar a ponte pela manhã, reforçavam essa necessidade de escutar, contar e recontar Paranapiacaba para si mesma. Desse encontro com as pessoas via facebook surgiu o material para a criação da intervenção Ação nº 05 – De onde se Vê! Experimento Poético Sherazade e o Mar.

 

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Deriva e trilha em busca do Mar!

 

Estando na cidade nomeada pelos indígenas como “Lugar de onde se avista o mar”, fomos em busca dessa visão, metáfora importantíssima para nosso projeto, primeiramente pelo Mirante no Morro porém nossa ação foi mal sucedida uma vez que esse mirante esta desativado. Assim seguimos a Trilha do Mirante e Caminho da Bela Vista guiados pelo monitor Douglas Dharma que nos apresentou essa área ambiental preservada da cidade e nos contou sobre a importância da trilha indígena para a construção da ferrovia.

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Oficina História de Nós - Paranapiacaba

 

Diante da dificuldade de contatar as pessoas da cidade durante a semana, decidimos usar a entrega de filipetas de casa em casa pra conseguirmos divulgar e trazer mais participantes para a Oficina. Com a parceria da Subprefeitura de Paranapiacaba conseguimos o espaço do Mercado para realização da oficina que aconteceu nos dias 07 e 08 de julho das 13h às15h. pois diante da neblina e do frio constante também não era possível fazer uma oficina extensa pois com a chegada do “Véu da Noiva” as pessoas voltavam para suas casas logo decidimos fazer uma jornada menor de oficina.

 

Diante dessas características locais pensamos uma oficina que pudesse despertar uma escuta sensível sobre a cidade e revelar o olhar próprio das pessoas sobre a cidade que habitam. Usamos o áudio das entrevistas que realizamos para construir uma paisagem sonora em loop que quebrassem o silencio da cidade e trouxesse as pessoas pra fora de suas casas e como procedimento de criação dentro da oficina trouxemos o conceito do “Saber Ver” de Edgar Morin, desafiando os participantes a registrar algo que fosse característico da vila e que ao mesmo tempo fugissem dos grandes símbolos como o relógio, os trens antigos e a própria ferrovia.

 

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Eis as imagens de Paranapiacaba que surgiram na Oficina:

 

Intervenção Ação nº 05 – De Onde se Vê! Experimento Sherazade e o Mar!

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Essa ação nasceu do contato com as memórias, histórias, fotos e comentários recolhidos no grupo do facebook Amigos de Paranapiacaba. Ali se revelava amorosamente a saudade de uma outra cidade e as relações tecidas no habitar cotidiano das pessoas, histórias comuns de vizinhos, bailes, fim-de-semanas, a paisagem da Serra, as mudanças do tempo, uma cidade de miudezas, de imagens guardadas com delicadeza pela nostalgia, pela melancolia própria do mar presentificada pela Neblina que vai e volta pela cidade mas permanece nesse contar, escutar, relembrar e recontar incessante como Sherazade ao contar por mil e uma noites histórias. Ali as pessoas revelavam uma intimidade profunda com a cidade que habitam ou habitavam, uma vez que muitos não moravam mais na Vila, como os relatos abaixo:

 

“Eu gostava de esperar o anoitecer em um ponto privilegiado do Morro. Subia em um banco que ficava na varanda da minha casa e esperava que os últimos raios de sol desaparecessem no horizonte. Eu tinha uma visão panorâmica da vila e procurava descortinar na Vila Nova ou na Varanda Velha a primeira casa a se iluminar pela luz artificial. Eu fazia desse momento o meu espetáculo particular. As luzes das casas iam se acendendo uma a uma a pequenos intervalos intercalados e em pouco tempo eram vários pontos de luz que iluminavam toda a vila.
Do meu posto de observação eu brincava inocentemente de identificar as casas que iam se iluminando. Ali morava a família tal, ali aquela outra e assim eu perdia a noção das horas. Era um tempo em que, em Paranapiacaba, os moradores eram todos conhecidos e amigos e nós sabíamos quem morava em cada casa.
Aquelas noites encantadas, distantes no tempo, e iluminadas pelas luzes e pelas estrelas, ainda permanecem em minha lembrança e frequentemente povoam meus sonhos.”
(Laercio Tadeu Januario)

 

“Estou muito idosa mas, gostaria de estar ai, passear na ponte fechada pela neblina, os cabelos orvalhado, escorridos os pingos molhando meu rosto, só faria falta o cheiro da fumaça e o apito do trem...minhas lembranças que jamais se apagam em minhas memórias...” (Silvia Henrique Carrasqueira)

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“Olha que legal essa foto do castelinho cansei de brincar nesse ziguezague quando criança com carrinho de rolimã eita saudades” (Roberto Ferreira Dos Santos Santos Ferreira)

 

Também foram usados depoimentos que o Historiador Eduardo Pin recolheu no seu trabalho sobre o Patrimônio Humano de Paranapiacaba como esse belo relato:

 

“...Meu pai é recém-aposentado na Ferrovia e quer se mudar daqui, estou muito resistente em sair. Eu criei raízes, meu avô foi ferroviário, somos ferroviários há três gerações. Tudo aqui está influenciado pela ferrovia. Quando desço do ônibus e chego à Vila, é sempre como se fosse a primeira vez, a paisagem ainda me impressiona. O turismo ainda não foi suficiente para a sensibilização e conscientização capazes de gerar um compromisso dos moradores. Eu sou uma prova disso, só depois que comecei a trabalhar no atendimento do trem turístico, que percebi como é especial o lugar onde eu

nasci. A Vila merece todos os tombamentos existentes. Meu sonho é que volte o trem de passageiros. Gostaria de escutar de novo ‘estação terminal: Paranapiacaba’. Descer do trem e encontrar uma Vila reconhecida e cuidada...” Andressa Borges de Moraes, 21, ferroviária, nascida na Vila. (Eduardo Pin. In Patrimônio Humano)

 

Recolhido e impresso essas narrativas e imagens, a artista-criadora Patrícia Santos partiu do Mercado, contando algumas das falas recolhidas, até chegar a ponte, espaço de ligação entre a Vila Martin Smith e Vila Velha e o Morro, lugar de encontro entre pessoas, trem e a natureza, e olhando na direção do caminho do trem para Santos, um dos caminhos do mar, continuou a contar à cidade suas próprias histórias, uma Paranapiacaba contada por seus habitantes. A cada história contada, uma folha amarrada na ponte como um espaço de relicário dessas vidas e histórias.

 

“ (...) quem comanda a narração não é a voz: é o ouvido.

- Às vezes parece-me que a sua voz chega de longe até mim, enquanto sou prisioneiro de um presente vistoso e invisível, no qual todas as formas de convivência humana atingiram o ponto extremo de seu ciclo e é impossível imaginar quais as novas formas que assumirão. E escuto, por intermédio de sua voz, as razões invisíveis pelas quais existiam as cidades e talvez pelas quais, após a morte, voltarão a existir” (Italo Calvino, in Cidades Invisiveis)

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Seguindo nosso 2º critério metodológico de pesquisa, Personas, fomos em busca de nomes como Bento Ferrone, Seu Diniz, Dona Cida, Seu Moretti, Ubirajara Pipoqueiro, Sr. Waldemar, Seu Bolão carteiro. Nessa busca, encontramos algumas dessas pessoas que nos distribuíram seus afetos sobre uma Paranapiacaba antiga e atual, uma cidade com muito barulho devido ao incessante trabalho do trem, diferente da atual silenciosa, o trabalho atento com os locobreques, as casas todas habitadas, os bailes de carnaval, cinema e jogos de futebol no Clube Lira Serrana, o Morro como lugar dos aposentados da ferrovia que queriam continuar morando perto do antigo trabalho, a famosa viagem até Santos de trem, o isolamento geográfico quebrado pela proximidade da “Família Ferroviária”, todos os habitantes se conhecendo, a presença constante da Neblina e a umidade constante como uma forma do Mar caminhar entre eles. Eis aqui algumas dessas pessoas e suas famílias:

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