top of page

São Bernardo do Campo, a terceira cidade do projeto.

Marcelo Eme 

Assim como nas outras duas primeiras etapas do projeto, tivemos na etapa de São Bernardo do Campo o levantamento de dados primários e secundários como ponto de partida para entrar em contato com a historiografia oficial da cidade. Buscamos estabelecer uma cronologia entre os principais acontecimentos históricos, relevantes para a formação e desenvolvimento da cidade até alcançarmos os últimos remanescentes desses processos, nesse momento alternamos a pesquisa documental para as fontes orais baseadas nas entrevistas em vídeo com antigos moradores de São Bernardo do Campo. Essa metodologia permitiu que cruzássemos a história oficial com a “não oficial” e o resultado dessas escutas forneceu a base para a preparação de um conjunto de ações que foram compartilhadas com os habitantes da cidade. Nas linhas seguintes relataremos os elementos da pesquisa histórica, a experiência de escuta com pessoas dos grupos constituintes da sociedade são-bernardense (entrevistas de história oral), também relataremos a experiência da intervenção artística inspirada nas informações coletadas nas entrevistas, bem como a escolha da produção de um documentário de curta duração que foi utilizado como dispositivo para dialogar com a população durante as exibições públicas e por fim a oficina “História de Nós” realizada no Serviço de Memória de São Bernardo.

 

Um breve panorama histórico

 

Ao traçarmos uma rota partindo da cidade de Santos até o bairro do Ipiranga em São Paulo teremos um percurso de 66,5 km pela BR 050 (Via Anchieta), São Bernardo do Campo surge quase ao final desse trajeto. Para quem sobe a Serra do Mar, logo depois de Cubatão, São Bernardo vai se revelando como um lugar de uma paisagem rica e diversificada, mas essa visão que o viajante tem ao subir a serra não é suficiente para compreender a vasta área territorial dessa cidade, maior que a cidade de Belo Horizonte em MG, São Bernardo dispõe de 409.88 km² de território dividido em 34 bairros, sendo que 10 deles estão na zona rural da cidade e juntos abrigam 827.437 habitantes *. Mas a realidade era outra em 1553 quando toda essa região era conhecida como Santo André da Borda do Campo, pouco ou quase nada transcorreu por essas terras além do ímpeto catequizante dos padres Jesuítas que viam nas populações indígenas um conjunto de almas que precisavam da salvação cristã, mas a resistência indígena se intensificava no planalto e por conta das investidas da etnia Carijó contra o bairro jesuíta, Mem de Sá, então governador geral, ordena o esvaziamento de Santo André da Borda do Campo em 1560, fazendo com que a pequena população mudasse para o local que daria início a cidade de São Paulo. O tempo passa e o que era antes era a vila acaba se transformando em uma região abandonada e sendo categorizada como sesmaria e doada para a ordem beneditina em 1717, mesmo ano que os religiosos portadores da medalha de São Bento dividem esse grande lote de terra em duas partes, batizando-as como Fazenda de São Caetano e Fazenda de São Bernardo.

                                                                              

* Dados do IBGE disponível em: http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?codmun=354870 acesso em 2017 setembro.

 

O século XVIII trouxe significativas mudanças para essa região, principalmente com a construção da estrada de Lorena que durou de 1789 a 1791, obra essa que surgia para facilitar o escoamento de mercadorias para o mar, preparando assim São Bernardo para uma espécie de apogeu econômico e social no século XIX, mas os entraves entre o clero de alguma forma corroboraram para que se definisse um desenho de cidade que existe até os dias de hoje, pois a fazenda de um senhor de sobrenome Rodrigues de Barros foi cedida para a construção em 1814 da Capela da Nossa Senhora da Boa Viagem e em 1825 foi erguida a Igreja Matriz, essa ultima servindo de marco para a delimitação da Freguesia, esses traçados ainda estão por lá e a Rua Marechal Deodoro é um exemplo disso. Ainda de forma incipiente esse pequeno núcleo urbano servia de parada para diversos tropeiros que transportavam o açúcar vindo do interior para o litoral, não só os tropeiros transitavam por lá, mas toda a sorte de viajantes que seguiam de Santos para o planalto e vice versa. A força que impulsionou esse grande fluxo de tropeiros foi a mesma responsável pela derrocada desse sistema de transporte. A necessidade de ampliação das plantações de cana-de-açúcar para regiões mais distantes do interior acabou inviabilizando o uso dos muares como a única alternativa para levar a produção ao porto de Santos. São Bernardo até meados do século XIX se beneficiava consideravelmente desse fluxo contínuo de tropeiros, mas com o aumento da produção agrícola e a necessidade de mais agilidade no escoamento, a estrada de ferro surge no horizonte paulista e com ela mais um período de obsolescência para o desenvolvimento de São Bernardo como cidade e, por conseguinte, do Caminho do Mar como rota comercial com a construção da estrada de ferro Santos-Jundiaí e a criação da São Paulo Railway em 1867.

 

O governo imperial já preocupado com a transição de mão de obra para o trabalho livre institui, a partir de 1847, os chamados Núcleos Coloniais que basicamente se estruturavam no sistema de parceria entre o governo e os colonos europeus, onde dividiam meio a meio a renda e a colheita oriundas dessas terras. Por ordem do governador da Província João Teodoro Xavier inicia-se a desapropriação das terras beneditinas para essa finalidade. Havia ao redor da capital quatro Núcleos Coloniais Glória, Santana, São Caetano e São Bernardo sendo que esse ultimo foi o que mais tempo perdurou por mais tempo. Lembremos que um dos objetivos principais dos Núcleos era o de abastecer a capital com bens de primeira necessidade, mas São Bernardo possuía um terreno inviável para o cultivo devido a grandes áreas de mata virgem e a má qualidade do solo para o plantio, isso forçou que os recém chegados colonos ao poucos deixassem a agricultura e se dedicassem a outras atividades econômicas não previstas para o funcionamento dos Núcleos, por exemplo, a extração de madeira e a fabricação de carvão foram as primeiras alternativas dos colonos. A chegada constante de imigrantes acelera o distanciamento da agricultura como principal atividade do Núcleo Colonial e também vai alicerçando os processos de desenvolvimento, pois em pouco tempo a população cresce de 2.782 habitantes em 1874 para 10.124 em 1900. Eram 409 famílias registradas pela Agência de Colonização em 1907 que habitavam o Núcleo Colonial de São Bernardo a maior parte eram famílias italianas, mas também brasileiras, russas, austríacas, árabes alemãs, portuguesas, húngaras, espanholas, francesas, suíças e cubanas.

 

Durante as três primeiras décadas do século XX São Bernardo do Campo viveu uma expansão industrial além das carvoarias e serrarias, também surgiram nesse período fábricas de móveis, charutos, licores, cerveja e sabão. Foi também nesse período que São Bernardo foi rebaixado a distrito de Santo André, mas logo a sociedade de época organizou um processo de emancipação, mas só exitoso em 1945.

 

Já em 1947 a Via Anchieta foi inaugurada e assim o Caminho do Mar ganha novas tintas, agora com uma via pavimentada que ligava o planalto até o porto de Santos. A Anchieta abre caminho para a chegada de indústrias automobilísticas internacionais, esse processo acelerou a industrialização em larga escala da cidade. Scania, Volkswagem e Ford e muitas outras fábricas que forneciam componentes para essas indústrias. São Bernardo entre as décadas de 50 e 70 se tornaria um dos principais pólos industriais do país, atraindo mão de obra de todo o Brasil que migravam para o ABC buscando alguma colocação nessas fábricas. No início da década de 80, São Bernardo do Campo contava com uma população na casa dos 400mil habitantes e uma parcela considerável desse contingente estava empregada na indústria, nesse período a economia global dava sinais de retração e logo as multinacionais arrocharam os salários da categoria dos metalúrgicos, mas ainda no regime militar São Bernardo foi palco das maiores mobilizações operárias da história do Brasil.

O Caminho da Pesquisa

 

Depois desse levantamento concluímos que trabalharíamos dentro de alguns eixos na etapa de São Bernardo do Campo, além do eixo principal que era a relação da cidade com o Caminho do Mar, optamos pela Imigração, Via Anchieta, Cultura Popular (migração) e o movimento sindical.

Imigrantes Italianos

 

Como sinalizado anteriormente os imigrantes advindos da Itália representavam o maior número de famílias estrangeiras que habitavam São Bernardo no final do século XIX. Durante as pesquisas nos arquivos do Serviço de Memória da cidade encontramos os registros fotográficos de uma procissão organizada pelo patriarca da família Marotti o Sr. José Paschoal Angelo Marotti, ainda hoje essa mesma procissão é mantida por um de seus filhos, o Sr. Luiz João Marotti, pessoa bem conhecida em São Bernardo do Campo, ele foi nosso primeiro entrevistado.

 

Do alto de seus 86 anos, Luiz Marotti conhece São Bernardo como poucos, sempre recorrendo à sua prodigiosa memória para relatar fatos, locais e cenas de um cotidiano absolutamente diferente do atual. Foi através de sua fala que compreendemos como os cinemas de rua serviam como alternativa de entretenimento, como eram as paisagens urbanas de outros tempos, ouvimos também sobre as fábricas de móveis, as tecelagens, sobre uma grande magnólia que fora derrubada em 1960, sobre o catolicismo forte e presente no imaginário local e sobre uma juventude de muito trabalho sempre relacionada ao comércio e ao trânsito de mercadorias pelo caminho do mar.

Após a colagem dos lambe-lambe, preparamos a exibição de um documentário de média duração com o material coletado na pesquisa. Nossa intenção era estabelecer um diálogo com a população de São Bernardo sobre suas memórias e afetos. Para isso organizamos uma exibição pública e gratuita do vídeo no dia 03/06/2017 as 14h00 na Câmara de Cultura Antonino Assumpção, localizada no Centro de São Bernardo. Após a exibição do documentário fizemos uma roda de conversa com os presentes sobre o conteúdo do material exibido. Outra exibição desse documentário foi organizada para o dia 12/06/2017, dessa vez na Praça da Igreja Matriz de São Bernardo às 18h.

 

A oficina “História de Nós” também foi realizada em São Bernardo do Campo, tendo como local o Serviço de Memória e Acervo no dia 31/08/17 às 14h00. Mais uma vez o documentário sobre São Bernardo foi exibido e utilizado como dispositivo para que as pessoas presentes complementassem os depoimentos do vídeo ou trouxessem novos olhares sobre os temas abordados dentro da narrativa do documentário.

Oficina História de Nós e Intervenção Ação nº4 – Procura-se

 

Depois de tomar contato com mais de 7 horas de entrevistas e uma quantidade razoável de materiais de arquivo, procuramos transpor essas informações para o terreno prático.

Com isso foi criada a Ação nº 4 “Procura-se” que consistia na colagem de diversos lambe-lambe pelo Centro de São Bernardo do Campo. Esses cartazes possuíam imagens de referências históricas da cidade, mas que por uma série de motivos não existiam mais, alguns exemplos são “Procura-se quem conheceu a Dona Matutina”, “Procura-se os ex-trabalhadores do DER”, “Procura-se a Magnólia”, “Procura-se as Tecelãs”, “Procura-se os Metalúrgicos”, “Procura-se uma cidade”, “Procura-se Por onde caminha o Mar”, “Procura-se a Praça da Matriz”, “Procura-se os Ipês”, etc. Cada lambe-lambe continha um número de celular para caso a pessoa atingida pela colagem quisesse nos contatar. Essa mesma ação de colagem foi repetida, dessa vez dentro da comunidade do DER. Essa ação ocorreu nos dias 30 de maio e 03 de junho de 2017.

Reunindo memórias sem o ranço acadêmico.

 

O discurso memorialista quase sempre vem carregado de certos determinismos, existe até quem se escude na academia para tanto. Uma coisa é certa, a memória é um componente vivo da sociedade, ela é mantida e transmitida por cada habitante da cidade, independente de estratificação social, credo ou posicionamento político.

 

Ademir Médici é um jornalista com dezenas de livros publicados sobre a história do ABC Paulista, mesmo mantendo uma coluna regular no jornal Diário do Grande ABC seus textos possuem um estilo que passa ao largo das convenções acadêmicas quando o assunto é História Oficial. Nessa entrevista de 1 hora, Médici compartilha seu conhecimento sobre o Caminho do Mar e a São Bernardo do Campo.

Movimento sindical e participação da mulher.

 

Existe um elemento histórico que precede as grandes greves do ABC paulista ocorridas no final dos anos 70 início dos 80, mas que já trazia um embrião das mobilizações operárias na cidade de São Bernardo do Campo. Lembremos que os imigrantes que vieram para o Brasil no final do século XIX para a constituição dos Núcleos Coloniais eram representantes de três componentes sociais primeiro os trabalhadores europeus que fugiam da crise de abastecimento de regiões da Itália, depois os camponeses que viam no Brasil alguma possibilidade de ascenderem socialmente e também por militantes anarquistas que estavam sendo perseguidos por problemas políticos. Os idéias anarquistas estavam presentes nos primeiros operários de São Bernardo no começo do século XX, onde já corriam algumas notícias de mobilizações e algumas greves.

 

Corre que uma das primeiras greves no Estado de São Paulo foi organizada por mulheres tecelãs e quem nos contou isso foi Sandra Zoccaratto, mais conhecida como Sandrinha entre o funcionalismo público de São Bernardo. Foi eleita a primeira presidente do SINDSERV em 1989 e teve uma vida marcada pela militância sindical, pessoa de uma generosidade enorme e com muitas histórias sobre a cidade na qual vive desde a infância. As memórias das grandes greves foram construídas ao lado de seu pai que era operário da Mercedes-Benz e sindicalista atuante durante as mobilizações que abalaram o ABC paulista na época. Ouvimos muito sobre a solidariedade operária, sobre a participação feminina no movimento operário, sobre as origens de São Bernardo e São Caetano, também ouvimos relatos sobre as enchentes que acometeram a cidade por conta da impermeabilização das áreas do centro.

Migração e intercambio cultural.

 

Já vimos que durante as décadas de 50, 60 e 70 São Bernardo recebeu grandes fluxos migratórios vindos de quase todas as partes do Brasil para buscarem uma vida melhor através da oferta de postos de trabalho nas montadoras de automóveis que haviam se instado em São Bernado. Essa grande massa de migrantes representava quase metade da população no final dos anos 70 e essas pessoas que saiam de seus Estados de origem traziam consigo suas referências culturais.

 

Em 1963 uma família saia de cidade de Monsenhor Paulo em Minas Gerais para morar em São Bernardo do Campo, mais precisamente para o Parque São Bernardo com o mesmo intuito de tantos outras. Só que a família Lemes era detentora de uma tradição secular, mas como todo processo de migração é perverso com aqueles que chegam, principalmente quando falamos de manifestações culturais de matriz áfrica, os Lemes passaram quase 20 anos sem voltar a Minas Gerais e muito menos colocarem sua Congada na rua. Esse estado de paralisia foi rompido quando a família decide criar o Grupo de Congada do Parque São Bernardo.

 

Tivemos a honra de ouvir as memórias de Benedito da Silva Lemes (o Ditinho da Congada) na sala de sua casa e acompanhado de sua mãe, Dona Cotinha, ele trazia em sua narrativa discussões sobre a questão do negro no Brasil, sobre o duro trabalho de manter uma tradição como a Congada fora de Minas Gerais, sobre as transformações do Parque São Bernardo. Também ouvimos o violão de seu irmão José e algumas músicas da Congada.

Existe também quem tenha crescido no DER e por conta do movimento da própria vida tenha se mudado de lá para outros bairros de São Bernardo, esse foi o caso de Dona Isalinda Castro Rosa, filha do famoso Sr. Rosa que foi motorista do DER durante a construção da rodovia. Dona Isa, como prefere ser chamada, lembra com emoção de sua vida no DER e discorda de quem nutre algum preconceito com os moradores de lá, ainda nas palavras dela “se fosse para voltar eu voltaria a morar no DER”.

A construção da Via Anchieta e o acampamento do D.E.R.

 

Na altura do quilometro 20 da Via Anchieta é possível avistar um aglomerado de moradias precárias incrustadas nesse pedaço da cidade que constituem a comunidade do DER. Sua história tem inicio ainda nos anos 40 quando as obras para a construção da rodovia estavam aceleradas e necessitavam turnos de trabalho de 24 horas, desse modo o Departamento de Estradas de Rodagem (DER) vinha construindo acampamentos ao longo do traçado da via para que os operários permanecessem sempre próximos da obra. Quando finalmente a BR 050 foi inaugurada pelo governador de São Paulo Adhemar de Barros em 1947 os operários do DER que estavam acampados nesse trecho da rodovia decidiram fixar residência por lá. Desde então um longa história de luta da população do DER junto ao poder público foi iniciada e parte dessa história nos foi relatada por uma antiga moradora do acampamento e filha de um operário da Via Anchieta.

 

Dona Cacilda chega ao primeiro acampamento do DER ainda com seis anos de idade, seu pai foi contratado para “quebrar pedras para a abertura dos túneis da Anchieta” conforme ela nos contou em sua entrevista. Suas memórias se confundem com a própria história da Via Anchieta, pudemos retornar no tempo através de sua narrativa quando era possível contar os carros que por ali passavam rumo ao litoral ou quando os casais de namorados ficam na lateral da via para ver o entardecer; ouvimos sobre figuras lendárias como o Sr. João Boieiro entregador de marmitas para os trabalhadores da construção e muitas outras histórias. Também pudemos compreender como o acampamento foi abandonado pelo DER e a comunidade se organizou através da figura de Dona Matutina e também como era a cidade de São Bernardo vista e freqüentada por quem havia chegado por conta da construção da rodovia.

bottom of page